quarta-feira, 5 de janeiro de 2011


Martha Medeiros - Muito carinho

“Tenho muito carinho por ti”.

Como é que é? Ela leu o cartão de novo, desde o início: “Fique bem. Tenho muito carinho por ti. A gente se vê. Beijo.”

Carinho? Depois de três anos de namoro, depois de 19 finais de semana na praia, depois de algumas dezenas de jantares românticos, depois de ter dado a ele um notebook de Natal, depois de tê-lo apresentado à família, depois de ter perdoado aquele torpedo de uma tal de Samanta, depois de ter tosado o cabelo só porque ele adorava sua nuca, depois de ter esperado ele sair de todos os seus plantões, depois de ter feito uma tatuagem a pedido dele, depois de sonharem juntos com uma viagem a Europa, depois de terem colocado um anel de compromisso, depois de todos os “eu te amo” que nunca foram economizados, ele vem agora dizer que sente muito carinho por ela? Pois que embrulhe esse carinho e mande por Sedex para sua tia do Espírito Santo. Que coloque todo esse carinho numa vasilha e deixe no quintal para matar a fome daquele seu cão sarnento. Que mande esse carinho para os desabrigados do Haiti, que ponha esse carinho numa mala e despache para onde houver uma guerra civil. Quem precisa do carinho desse traste? E então ela triturou o cartão até virar farelo de papel e jogou tudo pra cima. E eles caíram sobre sua própria cabeça, ficou parecendo caspa, uma cena deprimente que nem sei.

Tudo porque mulher é assim mesmo, não quer saber de nenhum tipo de consolação. Ai de quem lhe oferece carinho depois de já ter se declarado apaixonado. Fale em carinho para sua ex e cometa o pior dos insultos. Se não sente mais amor por ela, então sinta raiva, ódio, asco, deseje matá-la, esganá-la, qualquer coisa que a faça sentir o gostinho de ainda perturbá-lo, de ainda lhe dar trabalho, só não venha com essa conversa de samaritano. Se não sente mais paixão, então suma e dê a ela o benefício da dúvida: será que ele sente saudade, será que ele ainda pensa em mim?

Dizer que sente carinho é colocar uma pá de cal no passado, é como dizer que ela hoje tem a mesma importância que o hamster da vizinha, que lembra tanto dela quanto lembra de um moleque que estagiou no escritório oito anos atrás, que o carinho que sente por ela é mais ou menos como o carinho que sente por um blusão que ganhou no seu aniversário de 16 anos. Seja homem.

Torça para que ela se mude para o interior do Alasca, que engorde e não entre mais em nenhuma calça jeans, que ninguém a procure no Facebook nem a siga no Twitter, mas não venha dizer que sente muito carinho depois de todos aqueles amassos e juras de amor. Não seja tão cruel sendo assim tão bom moço.

Trecho do livro Divã - Martha Medeiros

"Eu sei que falei em prazer gratuito semanas atrás, e sei o que vc pensa a respeito: nada é gratuito. Mas, por enquanto não consigo contrariar essa forte impressão de que a conta não virá.Se eu sinto alguma culpa, não é pelo o que faço às escondidas,não é culpa por estar me dedicando a uma experiência socialmente reprovável : é culpa por não sentir culpa alguma.Por estar achando tudo condizente com meu grau de exigênciaem relação ao aproveitamento do meu tempo, condizente com a minha fome, que nunca foi de comida, mas de vivência. A pergunta que mais faço é: pq não? Desde pequena, desde que tomei gosto pelo ato de respirar e me senti atraída pelos dias que estavam por vir, horas repletas de novidade, desde que eu despertei para a leitura e que passei a sentir o sabor das coisas de uma forma muito entusiasmada, desde que eu soube que podia pensar e que o pensamento era livre, que dentro do meu pensamento ninguém poderia me achar, desde que meus seios cresceram e eu descobri que pessoas tinham cheiro, desde lá até aqui eu me pergunto: pq não me oferecer para aquilo que não fui preparada? Eu tenho as armas de que necessito para me defender, e mesmo que eu perca, eu ganho, já perdi algumas vezes e sei como funciona a lei das compensações. Quero acolher com generosidade o que em mim se manifesta de forma incorreta. Não vou pedir permissão aos outros para desenvolver a mim mesma, mando no meu corpo e em tudo o que ele confina, coração incluído, consciência incluída. Talvez eu esteja com receio de ter ido longe demais desta vez e esteja preparando a minha defesa, caso alguma coisa não saia como esperado. O que eu espero? Não espero nada, espero tudo,estou à deriva nessa aventura. Eu queria cristalizar esse momento da minha vida, mas estou em alta velocidade, e não sei se quero ir adiante, só que eu não tenho opção. Acho que é isso. Eu tinha opções, agora não tenho. Não consigo parar esse trem." (Martha Medeiros)